Gorda

 Por Os Cães do Parque

Foto: Fevereiro/2012

Ela já era idosa em 2009, quando a ação de voluntariado Os Cães do Parque se iniciava, assistindo os cães que viviam em situação de abandono em uma área florestal na Zona Norte de São Paulo.

Não se sabe como apareceu por lá, mas pessoas mais antigas do lugar afirmavam que ela já vivia ali há muitos anos; contavam também que por ali, sozinha, tivera mais de uma cria - até que alguém tivera a caridade de levá-la para ser castrada.

Foi já castrada e muito pacata que conhecemos a Gorda - que outros já então conheciam como "a Velha". Como vários outros cães fixados no lugar, aprendeu a se virar, identificando as pessoas com as quais deveria manter proximidade para ter alimento e proteção.

Ela já era o que se entende por "cão comunitário", muitos anos antes de animais nessas condições serem reconhecidos por lei.

Jamais saía dos limites do parque e, apesar de ter uma área gigantesca a seu dispor, era metódica e frequentava sempre os mesmos lugares, tanto que sempre foi fácil encontrá-la: nos finais de tarde, por exemplo, caminhava lentamente, como era seu jeito, até a parte mais alta do parque, onde um imenso gramado lhe servia como dormitório; lá se postava, como uma esfinge, muitas vezes sob garoa ou sob os mais rigorosos invernos, naquele lugar que, aos pés da Serra da Cantareira, é um dos mais frios da cidade.

Um portento de resistência, um tanque de guerra em forma de cachorro: não se tem notícia de que tenha ficado doente uma vez sequer.


Foto: Agosto/2013


Mas a idade avançada começou a lhe pesar: já há algum tempo estava surda; caminhava cada vez com mais dificuldade, até que um dia parou de andar. A Gorda não podia mais viver no parque.

A Soraia e sua família a acolheram e lhe ofereceram a chance de viver com a maior dignidade possível em seus últimos tempos. Pela primeira vez ela frequentou veterinários; chegou a se fortalecer e até voltou a caminhar por um curto período. Como já não precisava mais do espesso casacão - aquele que a fez sobreviver a muitos invernos - passou a viver com a pelagem tosada e limpinha. O gramado foi substituído por colchões macios e cobertores. Como que para desfrutar o máximo possível dessa nova e confortável situação, ela surpreendeu e viveu mais dois anos.


Foto: 2015

Sua longuíssima vida chegou ao fim no dia 09 de Maio de 2016; estima-se que tinha 18 anos ou talvez um pouco mais.

Ao contrário do que pode parecer a quem observa de fora, preparar e encaminhar animais em adoção está MUITO LONGE de ser a parte prioritária ou preferida desta ação de proteção animal: trata-se de algo trabalhoso, demorado, caro e MUITO chato. Quem recebe um animal em adoção, por não fazer ideia do esforço necessário para prepará-lo, dificilmente dá a esse fato o devido valor. E, por mais que se selecione candidatos, eventualmente ainda corre-se o risco de entregar um animal a pessoas despreparadas ou levianas.

Encaminhar adoções é algo que se faz por falta de opção.


Por outro lado, se há algo que justifique que essa ação de voluntariado se mantenha após sete anos, é justamente seu fundamento original: assistir os cães do parque, que tornaram-se verdadeiras extensões de nossas famílias; protegê-los, impedir que se reproduzam (há 6 anos não há nascimentos), vê-los envelhecer com dignidade e que sejam, pois, a última geração de cães vivendo por ali.

Muitos deles já se foram ao longo desses anos.

Se pudesse, a Gorda certamente gostaria de agradecer a todas as pessoas que a ajudaram em sua longa vida; aos funcionários do parque, principalmente às senhoras das equipes de limpeza que sempre a protegeram (a maioria já nem trabalha mais lá); alguns servidores das instituições gestoras, alguns inclusive residentes na área; nos seus últimos tempos, a todos que lhe presentearam com remédios, fraldas, cobertores e tudo mais para que vivesse confortável.

Pode ser pouco mais do que fantasia, mas gostaríamos de imaginar que, ao ficar livre de seu corpo envelhecido, antes de seguir seu destino, ela passou pelo parque para se despedir de sua amada morada.

Neste momento talvez ela esteja dormindo em seu imenso gramado, sentindo o cheiro da relva molhada pela última vez.




Postagem original sobre a Gorda, neste LINK.

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