Amizade

Por Fábio Pegrucci




Segundo relatos confiáveis, elas apareceram no ano de 2006, não se sabe se ao mesmo tempo, mas com certeza na mesma época; é até possível que tenham tido uma vida juntas em uma casa e, juntas, foram abandonadas; ou, se não, conheceram-se ali mesmo: eram duas cadelinhas de porte médio e ainda bem jovens, vivendo por conta própria em um grande parque público de São Paulo.

O fato é que elas jamais se separaram. Não é difícil supor que passaram fome juntas. Não é difícil supor que, juntas, enfrentaram vários invernos ao relento, naquele lugar que, aos pés da Serra da Cantareira, é tido como um dos mais frios da cidade. Teriam tudo para se separar, cada uma indo cuidar da própria vida, lutar pela própria sobrevivência, poderia cada uma ter encontrado um cuidador, um local onde se abrigar e fixar residência. Mas não: por anos viveram juntas, de modo que se uma fosse avistada, bastava olhar em volta e lá estaria a outra.

Quando as conheci, em 2009, faziam parte da pequena matilha que se abrigava sob a marquise de uma das construções do parque. É provável que já tivessem recebido vários nomes por parte dos funcionários e frequentadores do lugar; mas, a partir daquele tempo, para nós, a baixinha que tinha um canino tortinho e sempre pra fora da boca virou a “Dentinho” e a outra, de pelo longo e dourado, tornou-se a “Loirinha”.

É provável que, se não fosse por elas, toda essa história dos Cães do Parque jamais tivesse acontecido. No começo de 2010, quando entraram simultaneamente no cio, atraindo para o parque uma horda de vira-latas das redondezas, foram as primeiras cadelas que levei para castrar, numa época em que eu não tinha praticamente nenhuma informação sobre esse procedimento cirúrgico.

Castradas, permaneceram temporariamente abrigadas na casa na administração do parque para recuperação e, depois, foram novamente soltas. Poderiam mais uma vez ter se separado, mas não: como que de comum acordo, decidiram que não iriam embora e fixaram residência na varanda da administração. Ali viveram, juntas, sempre juntas, por mais de dois anos.

Eram diferentes nos modos e na personalidade. Uma, a Dentinho, medrosa, tímida e que, após a castração, foi ficando a cada dia mais gordinha e pacata, dificilmente saía de perto da varanda; a outra, a Loirinha, ativa, ousada e inteligente, dava longos passeios sozinha pelo parque, mas sempre voltava para o local eleito como “casa”: e para a companheira. Quando se reencontravam após essas breves separações, uma recepcionava a outra saltitando em volta dela; se cheiravam, se lambiam e corriam emparelhadas abanando os rabos.

Comiam no mesmo prato, bebiam no mesmo pote. Não tinham caminhas, roupinhas ou brinquedos. Mas juntas brincavam como filhotes, se divertiam em correrias e lutinhas. Depois se cansavam, deitavam e dormiam juntas. Eram felizes.

Não havia mãos ou circunstâncias humanas que as obrigassem a isso. Não eram cães que morassem numa mesma casa. Eram soltas, tinham vida livre num parque, um lugar enorme e habitado por muitos outros cães na mesma situação: mas escolheram viver juntas.


Foi assim. Foi assim durante pelo menos sete anos.

O que faz com cães estabeleçam vínculos desse tipo, não estando sob proteção humana, especificamente um com outro, talvez possa ser explicado de forma muito inteligente por algum especialista em comportamento animal.

Eu só sei dar um nome a isso: AMIZADE.



Amizade, como aquelas raras que a gente tem ao longo da vida, que significam muito mais cumplicidade e entrega do que afinidades que possam ser explicadas com palavras. As que rompem as barreiras do tempo e das distâncias. A pessoa que sempre se quer ver. A pessoa com quem o assunto sempre recomeça de onde havia parado. A pessoa cuja presença significa conforto. A pessoa cuja história, de tão misturada à sua, o faz se lembrar de quem você é, como fosse âncora de sua própria existência. Amizade, como amor que nunca morre.

Eu confesso que não tenho nenhuma.

Tive, ao longo da vida, algumas, não mais do que umas poucas. Mas hoje, não mais. Tenho parceiros, colaboradores, gente com quem divido interesses e objetivos; e até gente de que, sinceramente, gosto.

Mas amizade mesmo, como as poucas das quais me lembro de ter tido no passado e que as circunstâncias da vida afastaram ou como a que, durante anos, assisti acontecendo entre aquelas duas cadelinhas, nenhuma.

Não tenho e não vejo a menor chance de que aconteça. Não a essa altura da vida. Não no mundo de hoje.

Fazer amigos no mundo de hoje é uma missão muito, muito intrincada.


  
Nos tempos atuais, em um fenômeno que qualquer pessoa com meia dúzia de neurônios ativos pode pelo menos supor não se tratar de algo exatamente espontâneo, inúmeros grupos militando por suas causas específicas, parecem ter “fatiado” a sociedade de tal forma, que as diferenças entre as pessoas são a cada dia mais enaltecidas e tornadas aparentes, como fossem uns códigos de barras estampados nas testas. Há cada vez mais pessoas-bandeira: a identidade individual cada vez mais trocada pelas identidades coletivas de seus grupos, com seus discursos clichê e suas respostas prontas. Cada vez mais gente entrincheirada em seus guetos ideológicos, combatendo inimigos quase sempre imaginários.

Para cada ‘coletivo’, um “líder” (ou alguns deles), que, sob o pretexto de estar lutando pelos direitos daquelas pessoas que com ele se identificam e de buscar igualdade para aqueles que se autoproclamam excluídos ou vítimas de perseguição por parte de todo o restante da sociedade, promovem exatamente o oposto: fomentam as diferenças, as separações, os rancores, os ódios.

Afinal, é disso que eles – os líderes – vivem.

Para combater os ditos preconceitos ou perseguições, o roteiro é tão repetido que parece ser distribuído por uma espécie de franquia: conseguir a maior visibilidade midiática possível para casos isolados de violência/ofensa/constrangimento contra integrantes do grupo em questão; mobilizar o maior número de pessoas indignadas com o fato; fazer a opinião pública comprar a ideia de que os fatos não são isolados, mas uma perigosa tendência e que é necessário combate-la; e, para isso, a solução é sempre a mesma: uma nova LEI, que, de maneira inclemente, de cima para baixo, de forma mágica e instantânea, impedirá para sempre que tais atitudes, doravante criminalizadas, sejam repetidas, bastando para isso ameaçar com pena de PRISÃO seus eventuais transgressores.

A proteção de um grupo de indivíduos coletivizados por uma característica e/ou interesse comum, na base da CANETA: simples assim; e encontrar um político que empunhe a caneta é, das tarefas, a mais fácil.

Entristeço-me ao ver que a proteção de animais, inclusive muitas pessoas que conheço e respeito, adotaram o mesmíssimo expediente e gastam tempo e energia caminhando para a mesma direção. Luta-se para que as leis tornem-se mais rigorosas e as penas mais duras para quem pratique maus tratos contra animais.

Ok. Em tese, eu não discordo.
Só não compreendo por que imaginar que, se as leis atuais não são e jamais foram levadas a sério, novas legislações o serão.

Mas o que eu não aceito é, em se tratando de animais domésticos (cães e gatos, certamente em mais de 99% dos casos), pode-se falar de leis rigorosíssimas contra maus tratos, e nenhuma palavra, por exemplo, sobre uma regulamentação nacional da criação e comercialização: essa atividade, talvez o mais terrível foco de crueldade e de incentivo à posse negligente de animais e que está na base do problema do abandono, só é regulamentada em algumas cidades, por leis municipais; em São Paulo, por exemplo, há uma lei perfeita, em vigor desde 2007, mas que é solenemente ignorada e que o poder público é absolutamente incompetente para fiscalizar.

Também não compreendo como se pode falar de alteração do Código Penal antes de ensinar a população de que a castração dos animais domésticos é uma óbvia (e obrigatória) forma de inserção social de espécies tiradas da natureza há milênios e inseridas na nossa sociedade – e antes de que haja uma política nacional para esse fim. Novamente, apenas em algumas cidades há programas permanentes de controle reprodutivo de cães e gatos: em São Paulo, onde há o mais avançado deles, a demanda é muito maior do que a oferta.

Não acredito em proteção de papel. Não acredito em proteção baseada no vitimismo: e isso vale para ‘coletivos’ humanos e para animais. Acredito em educação e em políticas públicas acessíveis e eficientes.

Do modo como caminham as coisas, chegará o dia em que estarão todos presos, numa imensa penitenciária.

Estará presa a mulher que, no meio de uma briga, chamou a vizinha de “sapatão”, que por sua vez estará presa porque tomou três cervejas num aniversário e foi pega no bafômetro; as duas estarão a poucos metros da cela de um comediante que fez uma piada de mau gosto com um artista negro, que por sua vez estará preso por ter acidentalmente atropelado um ciclista; este também estará preso porque cometeu ‘bullying’ contra um colega de escola, que por sua vez estará preso por ter chutado o cachorro do vizinho.

Chegará esse dia.
Ou, talvez, até já tenha chegado e as grades, por serem desnecessárias, nem precisem existir materialmente.

  
Em meados de 2012, a Loirinha ficou doente, necessitando de cuidados e de medicação. Para complicar, a administração do parque mudou-se para outro imóvel, do outro lado da área florestal e os funcionários da instituição não se lembraram de levar as cachorras, que ficaram sozinhas na varanda da casa vazia. Elas dependiam agora exclusivamente dos nossos cuidados e já não poderiam ficar ali, soltas e sozinhas.

No início de Setembro, juntas como sempre, elas se mudaram mais uma vez: instalamos as duas em um dos canis do nosso ponto de apoio, em outra área do complexo florestal. Já não viveriam livres como estavam habituadas, mas sim num abrigo: e fariam apenas passeios duas vezes por dia, com coleiras e guias. Dentinho surpreendeu e adaptou-se rapidamente: gorduchinha e preguiçosa, pareceu não se importar em ficar presa a maior parte do tempo, já que passou a ter, em troca, um canto macio para deitar e duas fartas refeições diárias. Loirinha sentiu mais a mudança: simplesmente não suportava a coleira e, apesar de estar com a saúde fragilizada, era óbvio que, se tivesse uma chance, sumiria dali de volta para o parque e para sua vida livre.

Incontáveis vezes saí com ela de lá, rumo à clínica veterinária: consultas, exames, transfusões, internações. Só ela e eu, muitas vezes, ela ali, sentada no banco do passageiro, como fosse mesmo uma pessoa com quem eu tinha longas conversas no trânsito. Muito inteligente, de olhar muito vivo e espírito irrequieto, ela parecia mesmo saber que, tanto eu, quanto aquelas moças de jalecos brancos estavam tentando de tudo para recuperar a saúde dela.

Quando o estado dela se agravou, a grande preocupação passou a ser a outra, a companheira inseparável: Dentinho ficava angustiada quando se via sozinha, mesmo durante as poucas horas em que a amiga ficava ausente, nas idas à clínica.

Assim, foram mais seis meses.



Loirinha morreu na manhã do dia 11 de Março de 2013, vítima de anemia hemolítica autoimune. Calcula-se que tivesse cerca de oito anos de idade.

Cerca de dez dias antes, ela parou de reagir à medicação, seus hemogramas passaram a apresentar resultados alarmantes e as duas transfusões feitas em situação de emergência não surtiram o efeito esperado. Seu corpinho foi sepultado na mata, a poucos metros do abrigo que foi sua última morada e sua ausência deixou um vazio gigantesco: o trabalho diário de assistir os cães do parque nunca mais foi o mesmo.

Eu bem que gostaria de ser, de fato, tão pragmático quanto sugerem as coisas que escrevo sobre a proteção de animais. Não sou. Penso nela todos os dias. Penso que, apesar de todo o esforço, talvez pudesse ter feito mais. Sinto muita falta dela.


Uma se foi, mas a outra ficou, uma viuvinha gordinha e com um canino tortinho, sempre fora da boca: e olhar para ela sem a companheira, depois de tantos anos, ainda não deixou de ser um pouco esquisito. Mas ela está bem: afeiçoou-se a uma outra cadelinha abrigada – a Tieta – e as duas estão sempre juntas. Não é a mesma coisa, não dividem o prato, nem brincam de correrias e lutinhas. Mas escolhem estar sempre próximas, jamais brigam e se fazem companhia.
 
Os animais temem a morte apenas por instinto, pois não a compreendem e nem filosofam sobre ela; e têm sobre nós a vantagem de não compreenderem o que é definitivo ou irremediável. Para a Dentinho, a companheira apenas 'não está'. Se, por um milagre, ela retornasse, iria recepciona-la saltitando em torno dela; e se cheirariam e se lamberiam, correriam emparelhadas abanando os rabos, voltariam a comer no mesmo prato, a beber no mesmo pote, dormiriam juntas e seguiriam a vida.

E o que eles definitivamente não podem sequer supor, é que um exemplo de amizade tão ingênua quanto sincera, tão desinteressada quanto indestrutível, possa causar uma ponta de inveja em um humano, cuja desesperança nas relações com seus semelhantes não lhe permite sequer imaginar viver algo parecido.


Loirinha - vídeo clipe, despedida
Música:  Ev'ry time we say goodbye (Cole Porter)
Intérprete: Rod Stewart


5 comentários:

  1. É difícil viver em completa comunhão, como elas viviam. Azar o nosso.

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  2. Belíssimo texto, me emocionei, parabéns pelo trabalho.

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  3. Simplesmente lindo! Estou chorando... amo os animais, cachorros principalmente... nao existe amizade mais sincera.

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  4. Talvez seu melhor texto, sentimento puro, vc se expondo por inteiro em seus quereres e dúvidas, em seus questionamentos e emoções.

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  5. Fábio texto maravilhoso. Estou chorando......

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