Era uma vez

Por Fábio Pegrucci



Era uma vez, em um certo país muito distante, algumas pessoas que amavam os animais; e, por tanto amá-los, reuniam-se em pequenos grupos para protege-los e assisti-los. Alguns desses grupos conseguiam construir abrigos, para onde animais vítimas de violência, abandono ou negligência eram levados: para tratamento, reabilitação ou apenas para que tivessem algum conforto e recebessem algum carinho, enquanto aguardassem por uma família que os recebesse de forma definitiva.

Mas não era fácil a missão dessas pessoas: manter lugares como esses e oferecer dignidade a um grande número de animais era caro e trabalhoso. Apesar de muitas e muitas pessoas naquele país dizerem-se simpatizantes daquela causa, eram pouquíssimas as que se dedicavam ao trabalho voluntário. As despesas, altíssimas, eram invariavelmente rateadas entre as pessoas de cada grupo, pois dificilmente contava-se com algum apoio, fosse público, fosse privado.

Proteger animais naquele país era missão que só se abraçava por amor, pois nada mais se recebia em troca. Nem mesmo compreensão: a imensa maioria daquela sociedade, inclusive seus governantes, comumente consideravam os protetores de animais pessoas desequilibradas, que dedicavam suas vidas e seus recursos para aquela tarefa que julgavam algo estúpido e desimportante.

Porém, os governantes, que em nada ajudavam, detinham o poder de fiscalizar.

Um dia, agentes do governo resolveram fazer uma fiscalização em um daqueles lugares, onde pessoas, com seus próprios recursos, tentavam ajudar animais abandonados que encontravam nas ruas da cidade. Chegaram, de surpresa, de manhazinha, com seus jalecos brancos e suas caras azedas – e muito bravos.

- Que sujeira! – gritou o homem do governo.
- Nós íamos começar a limpeza agora. – justificou uma das pessoas que lá trabalhavam.
- E o que é isso? Animais mortos!
- Encontramos abandonados na praça da cidade. Estavam doentes. Tentamos salvar, não conseguimos.

As pessoas do governo não quiseram saber de explicações. Aplicaram uma pesada multa e mandaram fechar o lugar: segundo eles, tudo ali era “inadequado” – foi a palavra que usaram. Daquele jeito não podia continuar; contudo, esqueceram-se de explicar o que deveria ser feito daqueles animais ali abrigados, todos eles encontrados nas ruas da cidade que eles mesmos administravam.



Angustiaram-se as pessoas que mantinham o lugar. O que fazer dos animais? E como continuar o trabalho? Havia algo ainda que os preocupava muito: o que pensariam deles os colegas da proteção, os outros grupos que abraçavam a mesma missão em outras partes daquele país? Seriam vistos como negligentes e incapazes? Seriam encarados como gente mentirosa, que maltrata ao invés de ajudar? Seriam acusados de farsantes pelos próprios colegas?

Mas isso não aconteceu: naquele momento de angústia, por uns instantes esqueceram-se que quem abraça tal missão – a de proteger seres incapazes até mesmo de agradecer – são invariavelmente pessoas despidas de vaidade; e que fazem da solidariedade e do auxílio ao próximo as velas mestras da própria existência! Afinal, não tinham todos os defensores de animais, São Francisco de Assis – e suas lições de benevolência, humildade, caridade, amor ao próximo e servir sem nada esperar em troca –, como uma espécie de “padroeiro”? Além disso, todos que se dedicavam a trabalhos semelhantes tinham total consciência das dificuldades que se enfrentava para desempenhá-lo.

Aquele não era, pois, um terreno para rivalidades ou competição: para aquelas pessoas o que importava era apenas o bem estar dos animais. Mais nada.

Foi assim que ninguém – ninguém! – entre os protetores de animais levantou-se para criticar ou apontar erros.

Muito pelo contrário!

O que se viu foi uma grande onda de solidariedade brotar de todos os lados, de pessoas também envolvidas na difícil missão de proteger animais, se mobilizando no intuito de ajudar. Pois se aqueles colegas, daquela cidade, estavam em dificuldades e ainda sofriam a repressão dos governantes locais, era obrigação de todo protetor auxiliá-los – mesmo porque, e isso era fácil de concluir, se estava agora acontecendo com uns, obviamente depois poderia acontecer com outros!

Muitas doações começaram a chegar. Materiais de limpeza e de construção, rações e medicamentos. O movimento cresceu e se espalhou, passou a envolver gente que jamais havia dado muita atenção aos problemas dos animais, mas que se comoveu com aquele drama e se ofereceu para ajudar. Pedreiros e encanadores, carpinteiros e pintores se ofereceram para trabalhar voluntariamente; médicos veterinários se apresentaram, oferecendo algumas horas semanais de seu trabalho; advogados também se manifestaram para defender aquela organização de amparo aos animais pelas vias jurídicas. 

Mas o que mais comoveu os integrantes daquele grupo protetor foram as pessoas simples e sem qualquer qualificação profissional, que começaram a aparecer se oferecendo para realizar qualquer tipo de tarefa e ajudar no que fosse possível, nem que fosse apenas para limpar canis, dar banho em animais ou acolhe-los provisoriamente em suas casas, até que os trabalhos terminassem.


Logo, o que se via naquele lugar era um grande mutirão de gente entusiasmada, feliz por ter a oportunidade de ajudar – ajudar os animais e ajudar as pessoas que ajudavam animais. E o abrigo foi totalmente reconstruído. Ficou lindo, limpo, amplo e agradável.

Findada a tarefa, os advogados voluntários enviaram uma petição em caráter de urgência aos órgãos fiscalizadores do governo: exigiram uma nova inspeção! No dia seguinte, muito a contragosto, lá estavam novamente os agentes públicos, em seus jalecos brancos e suas caras azedas. Diante do que viram, nada puderam fazer: aprovaram as reformas e retiraram a proibição de funcionamento.

Todos se abraçaram emocionados.
Houve uma grande festa.

A partir do dia seguinte, o trabalho de amparo aos animais seria retomado; na verdade, seria praticamente recomeçado do zero, pois a maioria dos animais que ali estavam abrigados havia sido adotada pelos próprios voluntários que, por terem tido a oportunidade de conviver com eles, por eles se haviam apaixonado. Mais ainda: aquele já não era um pequeno grupo de pessoas, passaram a ser muitos – pois muitos dos que haviam participado da obra de reconstrução, acabaram se engajando definitivamente àquela causa, àquela missão.

Mas não foi só isso.



Foi tão grande a repercussão do que aconteceu naquela cidade, que em outras partes do país, fatos semelhantes começaram a ocorrer. Outros grupos protetores e outros abrigos para animais começaram a receber auxílio. Muitas pessoas que só se lembravam dos protetores de animais e só os procuravam para pedir ajuda, começaram a procura-los para oferecer ajuda! Aconteceu ainda que muitas novas células de proteção começaram a brotar em lugares onde jamais iniciativas semelhantes haviam sido tomadas. 

Todos queriam participar daquele tipo de trabalho, em que não havia competições ou rivalidades, que transbordava otimismo e amor e do qual não se esperava qualquer tipo de recompensa: servir já era o seu objetivo!

Com o trabalho de defesa dos animais transformado em algo pujante e disseminado por toda a parte, logo as autoridades públicas do país não puderam mais ignorar suas demandas – mesmo porque, tratavam-se de coisas simples, pontuais, baratas e completamente razoáveis, pois contemplavam não apenas os animais, mas também questões ambientais e de saúde pública, logo, de interesse de toda a sociedade. 

Todas as cidades instituíram programas gratuitos de esterilização de cães e gatos – pois entendeu-se definitivamente ser essa a única forma de combater o abandono e promover a inserção social dos animais. O atendimento médico-veterinário gratuito para animais de pessoas de baixa renda também tornou-se uma realidade. Passou-se a fiscalizar de forma muito dura os criadores e comerciantes de animais – e a reprimir os que faziam isso de forma ilegal: isso sim era atribuição das pessoas de jaleco branco do governo!

Ninguém nunca mais cogitou a imposição de leis que punissem especificamente quem cometesse maus tratos contra animais: compreendeu-se que eram desnecessárias, que tal ideia apontava na direção errada, que servia apenas para fomentar ódios e aumentar ainda mais a intolerância e a incompreensão.


Com todo o país contagiado por aquela nova paixão, logo toda família queria ter em casa um animalzinho, sem se importar com sua raça, cor ou tamanho; casos de animais sendo abandonados passaram a ser cada vez mais raros, até que isso simplesmente deixou de acontecer: ninguém abandona seres tão amados! E todos os animais recolhidos aos abrigos foram sendo adotados. Mesmo os mais feinhos. Os doentes. Os velhinhos, aos quais restava pouco tempo de vida.

Ao final de uns poucos anos, aconteceu naquele país algo inacreditável: os abrigos de animais foram ficando vazios. As feiras de adoção foram desaparecendo. Não havia mais cães ou gatos nas ruas. Não havia mais cães ou gatos para defender de maus tratos, abrigar, encaminhar para uma adoção. Todos eles estavam em seus lares e lá permaneceriam até o final de suas vidas. Não havia mais o que proteger. A missão havia sido encerrada.

A proteção animal ... acabou!

E então, as pessoas mais velhas, que desde quando se entendiam por gente haviam se dedicado àquele trabalho, puderam enfim descansar: voltaram para suas vidas, foram dar mais atenção às suas famílias; e fizeram isso com seus corações em paz e as almas cheias de contentamento, pois tinham a certeza de haviam cumprido até o fim uma missão.

Porém, muitas pessoas, em especial as mais jovens, não quiseram parar: não quiseram parar de servir. Tinham se “viciado” em ajudar! E, não havendo mais animais para proteger, engajaram-se a outras causas e outras missões, pois havia muitas: e gente que ajuda, é gente que ajuda sempre, sem escolher a quem. E gente assim, sempre arruma algum tempo e algum recurso para praticar o bem.

E foi assim que aquele país todo foi tocado por esse sentimento. Guiado pelas pessoas que fazem da solidariedade e do amor ao próximo as velas mestras de suas existências, aquele país seguiu seu rumo, onde cada amanhã seria sempre melhor que hoje.



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Sentados no tronco caído de uma velha árvore, dois homens observam aquela cena. Um é velho, de ar solene e cabelos brancos; o outro, jovem e de olhar vívido.

- Você compreendeu o que se passou? – pergunta o mais velho. 
- Sim, mestre. Está muito claro. – responde o outro. 
- Nem sempre o que se vê na superfície – continua o primeiro – traduz a verdade mais profunda. 
- E aquelas pessoas ainda acreditam que estavam salvando animais.

Sorriem ambos. O ancião prossegue:

- Muitos animais estão na Terra, entre os homens, em missão de salvamento. Muitas pessoas precisam deles para dar sentido às suas vidas. Algumas obtêm através deles sua única identidade. Outras, só conseguem praticar o amor se o mesmo for dedicado a eles.
- Ainda assim, até entre essas pessoas há vaidades, divisões, competições e rivalidades. – observa o jovem.
- Sim, a humanidade ainda tem muito o que aprender – diz o mestre – e os animais, em sua pureza infinita, prestam-se humildemente a esse papel. 

Permanecem calados por alguns instantes. O jovem quebra o silêncio:

- Não há entre os homens quem já tenha notado essa verdade? 
- Alguns apenas – responde o mestre -, a maioria desses humanos não nota, e talvez nunca chegue a notar, que o que os animais fazem por eles é infinitamente mais do que eles podem sonhar lhes dar.
- Mas nesse país o propósito foi atingido ...
- Sim, ainda que poucos tenham entendido o que se passou.
- E ainda exista quem acredite ter sido o herói dos animais.
- Sempre haverá. Mas isso não importa – diz o ancião - , ao contrário dos homens, os animais não precisam receber medalhas.

Após mais alguns momento de silêncio, o homem mais velho se levanta.

- Temos que ir – diz ele –, ainda há e sempre haverá muito o que fazer. A missão nunca termina e servir já é o seu próprio objetivo.

E, tendo dito isso, transfigura seu corpo espiritual, adquirindo a forma de um grande cão, negro e de porte altivo. É seguido pelo discípulo que, por sua vez, assume as formas de um gato de pelagem alaranjada e olhos azuis.

Voltam então a habitar entre os homens.


19 comentários:

  1. Parabéns menino-coruja, essa é pra pensar muito!

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  2. Cara, parabéns pelo artigo!
    Me diga onde é este país que quero ir para lá, de vez.

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  3. Pois é...eu ia fazer a mesma pergunta...também quero viver em um país igual a esse, mas infelizmente acho que ele ainda está por nascer ou quem sabe daqui a mais 1.500 anos?

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  4. Temos que criar esse país....

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  5. Construção perfeita do texto !!!
    Quem dera fosse integralmente lido e compreendido. Mais ainda, profundamente verificado nos corações que se pregamos amor aos animais que desamor estamos construindo paralelamente ??? Obrigada

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  6. Perfeito, fiquei emocionada!

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  7. Que texto lindo! E bota muita gente pra pensar....

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  8. Esse lugar infelizmente não existe :(

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  9. Lindo! Não vamos lamentar que este pais não é o nosso, vamos lutar para que um dia ele seja; nós
    protetores já fazemos o impossivel para mantermos
    os animais o que precisamos é de mais união pois
    não é a união que faz a força! Essa foi a mensagem do texto.

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  10. Emocionante!!!
    Te admiro muito Fábio Pegrucci!!

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  11. Essa é a sua missão dentro da egrégora... capisce? Quando falamos em um trabalho maior, acho que seu grande papel, talento, dom, é esse ;)
    Tamo junto, irmão!

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  12. Só quem já teve ou tem um animal de estimação entende o texto. O carinho retorna na medida em que o dás.

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  13. O Fabio deu a receita.....nós devemos fazer o bolo.
    Parabéns amigo por mais essa paulada na gente. Valeu!

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  14. Deveria ser exatamente assim...será que chegaremos aí? País dos sonhos!!!

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  15. Parabéns, Fábio. Texto maravilhoso. Eu já compreendi faz tempo que nossos amiguinhos são seres infinitamente superiores a nós, e nos dão o imenso privilégio de sua companhia... Como eu queria que todos países fossem assim. Abraços.

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