Ozzy, Valentina

Por Fábio Pegrucci
para Os Cães do Parque


Quando vi pela primeira vez a Valentina e seus seis minúsculos filhotinhos recém nascidos, no dia 22 de Maio de 2012, já soube imediatamente que aquela seria mais uma longa história. A gente vai ficando calejado. Já não fica mais "revoltado" porque nem há tempo pra isso. Antevê tudo o que irá acontecer pelos próximos tempos, avalia o trabalho que terá e assume os riscos. Já são muitas histórias parecidas nos últimos três anos. 

Ela havia sido encontrada com a ninhada na noite anterior no estacionamento do parque, ninguém soube dizer se havia sido abandonada já com eles ou se havia dado a luz por lá. Os seguranças a haviam recolhido para a casa da administração e abrigaram precariamente.

Ao ir até o local onde eles estavam, preparei-me para encontrar uma cadela brava, como elas sempre ficam quando estão com crias novinhas. Muito ao contrário disso, conheci uma vira-lata magrela, maltratada, mas muito amistosa, que largou os filhotes num canto para vir me cheirar, brincar comigo e receber comida da minha mão. 

Valentina era bobinha: muito embora a gente saiba que nos animais tudo é uma questão de instinto, eu poderia jurar que ela não entendia direito o que significavam aqueles cachorrinhos que tinham saído de dentro dela e que ela deveria amamentá-los o tempo todo e protegê-los com a própria vida.


Dois dias depois, quando os tiramos da casa da administração e transportamos até nosso ponto de apoio dentro do parque, onde permaneceriam abrigados, já havia um filhote a menos: o menorzinho, que cabia na palma da mão, já havia perecido. 

Agora eram cinco cachorrinhos de olhos fechados e sua mãe-criança e, à essas alturas, eu já tinha a memória remetida a uma antiga canção, tema de enorme sucesso de uma novela em preto e branco, dos anos 70, chamada "Selva de Pedra": "Rock and Roll Lullaby" - algo como 'rock and roll de ninar'. Mas eu não queria aquela gravação antigona, eu já ouvia a voz macia da Fernanda Takai, com aquele xilofone infantil e as demais sonoridades do espetacular disco "Música de Brinquedo" (sim, gravado inteiramente com instrumentos de brinquedo!). 

A história mal tinha começado e eu já sabia de que forma iria contá-la quando acabasse - e de que forma mágica pretendia conseguir a adoção, não dos filhotinhos (coisa óbvia), mas da mãe deles.

O que eu não sabia era que, nos dias seguintes, outros três cachorrinhos não resistiriam: talvez fossem prematuros, talvez aquela mãe espevitada realmente não os alimentasse direito. O certo é que, dez dias depois, eram apenas dois - dois machos: o Ozzy, desde sempre o maior e nitidamente o mais forte dos filhotes, e o pequeno Otto, que, ao contrário, sempre pareceu muito frágil.

Para o roteiro que eu compunha mentalmente, eu sabia que deveria fotografá-los mais ou menos na mesma posição, a medida em que crescessem - e que usaria transições bem lentas dessas imagens:

31 de Maio
13 de Junho
1º de Julho
28 de Julho
Até que Otto e Ozzy estivessem, finalmente, prontos para serem castrados e adotados, foram quase três longos meses, na parte nada musical, nem artística, nem glamourosa de todas as histórias, limpando o canil imundo de todo dia, cuidando de suas sarninhas e vermes, etc, etc. 

E Valentina era um capítulo à parte: aquela que deveria se comportar como mãe, na verdade era uma filhote a mais na história - e uma filhote grande, bagunceira, cheia de energia, que precisava desesperadamente sair para passear algumas vezes ao dia e sempre bem presa com coleira e guia: ao menor descuido, ela estaria pronta para fugir e se embrenhar no mato atrás de qualquer coisa de se movesse.


No finalzinho de Julho, com os filhotes já crescidos o suficiente para serem castrados, passou a ser indispensável separá-los da mãe e conseguir para eles um lar temporário até que fossem adotados: só assim poderiam, todos, receber tratamento mais adequado. Valentina também seria castrada e, depois disso, nas semanas seguintes precisávamos tratar de alimentá-la melhor para que engordasse e cuidar de sua pele, algo que seria impossível com a bagunça e a sujeira causada pelos filhotes no canil.

Então, no dia 28 de Julho, antes que a família fosse separada, foram captadas as imagens finais do vídeo Otto, Ozzy, Valentina, para fechar o pequeno roteiro concebido mentalmente mais de dois meses antes.

Nos dias seguintes, editei o vídeo, deixando que a canção "Rock and Roll Lullaby" contasse a história da jovem mãe deixada sozinha, com as imagens dos filhotes crescendo, até as cenas dos três brincando no gramado. Não me importava o mundo de gente que nos procura sempre que anunciamos filhotinhos para adoção: o que eu buscava era que algumas poucas pessoas realmente captassem e se emocionassem com aquela história - e, entre elas, em algum lugar, haveria de estar o adotante de Valentina.  

A chance de Valentina estava dentro daquela história: fora dela, ela seria apenas mais uma cadela sem raça definida, adulta, grande, abandonada em um parque, igual a tantas outras, anunciadas na internet ou que vão e voltam das feirinhas de adoção todos os finais de semana. Era necessário emocionar alguém, bastaria uma pessoa - desde que essa pessoa tivesse as condições adequadas -  e convidá-la a ser o final feliz da história toda.

O anúncio de adoção dos três, com o vídeo clipe que já estava quase pronto, deveria começar a ser divulgado no dia 5 de Agosto, mas um fato completamente inesperado alterou toda a história.


Na manhã do dia 3 de Agosto fui acordado com a notícia de que o Otto não estava bem: não comia, não brincava e não queria sair da casinha para passear. Corri para o parque. Encontrei-o prostrado, imóvel, deitado no fundo da casinha. Tirei-o de lá, notei que estava com a barriguinha inchada. Tentei animá-lo. Nada. Ele que, na noite anterior, estava absolutamente normal, brincando e se alimentando.

Levei-o para a clínica, onde a doutora Luciana o examinou e disse que o abdome distendido poderia significar muitas coisas, mas era certo que ele sentia muita dor. Solicitou um ultrassom, realizado um pouco depois, através do qual verificou-se que o que ele tinha era gravíssimo: uma intussuscepção intestinal. Eu, que nunca tinha ouvido falar em tal coisa [coloco aqui este LINK pra quem quiser saber do que se trata], fui informado que ele tinha um rompimento da parede intestinal, já com contaminação da cavidade e que estava entrando em choque. A doutora Fernanda Conde, que não estava na clínica, foi chamada às pressas para operar. Durante mais de duas horas de cirurgia, ela tentou corrigir o problema. No decorrer do procedimento, o filhote chegou a ter uma parada cardiorrespiratória e foi ressuscitado. Contudo, pouco depois acabou sucumbindo. Otto morreu.

Nesse trabalho, a gente é obrigado a aprender a lidar com a morte. Ela faz parte do jogo, vira e mexe a gente a vê, rondando. E eu não faço dramas com isso. Mas essa perda doeu, por lembrar de tanto trabalho, tanta preocupação, tantas horas gastas em cuidados - e pensar naquele pequenino, que estava quase pronto para finalmente ganhar um lar.

Já no dia seguinte, captamos novas imagens (agora só de Ozzy e Valentina) para o vídeo clipe que teria que ser totalmente refeito. Eles seriam separados, pois Ozzy iria para lar temporário e aquela seria a última chance de filmá-los e fotografá-los juntos. Mas demorei muitos dias para ter ânimo de reiniciar a edição do material.

Otto, Ozzy, Valentina: o vídeo clipe que ninguém viu.




Ozzy, Valentina: o vídeo clipe que MUITA gente viu e que valeu a adoção dos dois; reeditado e com legendas em português.



Ozzy e Valentina despediram-se no dia 05 de Agosto: ele foi acolhido em lar temporário pela Luciana Pontes, ela permaneceu no abrigo do parque. Ambos foram castrados, vacinados e tiveram maiores cuidados com alimentação e limpeza pelos dias seguintes.





Quando o anúncio começou a ser veiculado, aconteceu o esperado: muita gente se manifestou, comovida com a história. Muitas pessoas (muitas mesmo) elogiando o vídeo, algumas que o fizeram apenas por isso, mesmo sem a intenção de adotar. Algumas pessoas manifestaram o desejo até de adotar os dois juntos (que não era algo que tínhamos em mente). 

Ozzy com a Luciana, em seu lar temporário.

Ozzy teve mais de 20 propostas de adoção, algumas muito boas. Acabamos por decidir entregá-lo a uma das últimas pessoas a nos procurar, mas que nos transmitiu integral confiança logo no primeiro contato. No dia 18 de Agosto de 2012, o Ozzy foi adotado pela Camila, que o recebeu em casa, na Zona Oeste de São Paulo.

Ozzy, adotado pela Camila.
Sobre a Valentina eu conversei durante duas semanas com algumas poucas pessoas. Era importante ressaltar que, embora todo o "marketing" apelasse para o lado emocional, a adoção tinha que ser consciente. Era necessário que as pessoas soubessem que, apesar de completamente mansa, aquela criatura era cheia de personalidade, espevitada, maluquinha, precisava de uma casa com bom espaço e segurança, além de muita paciência.

Com o André Luiz eu conversei mais, várias vezes. Como outras pessoas, contou o quanto ele, a esposa e o filho haviam se emocionado com a história e o vídeo. Chegaram a pensar nas adoções conjuntas dos dois, mãe e filhote. Prestou todas as informações, transmitiu a necessária segurança e um enorme e sincero desejo de fazer parte daquela história, sendo o final feliz dela.

Quando Valentina chegou à casa deles, num condomínio residencial no município de Ferraz de Vasconcelos (SP), no dia 25 de Agosto de 2012, já chegou causando, toda desinibida. Lá ela já tinha a sua espera uma casinha com o nome dela pintado na frente, muitos brinquedos e um ótimo espaço. 

No dia, do André, mais uma revelação: "Rock and Roll Lullaby" havia sido a música do casamento dele com a Isabela, uma razão a mais (além de todas as outras) por eles terem gamado naquela história. Como eu imaginei lá atrás, quando pensei pela primeira vez no vídeo tendo essa canção como tema, alguém, em algum lugar, haveria de ser especialmente tocado.

Parece que deu certo.


A Isabela, o David e o André recebem a Valentina: final da longa história.

Já faz dois meses que a Valentina mora com eles e, pelo que sabemos, ela continua a mesma: maluquinha, cheia de energia e perseguindo qualquer coisa que se mova. Mas está indo muito bem.

Quando eu abracei esse trabalho, coloquei a serviço dele tudo o que eu sabia: os textos, a experiência com a internet e as vastas referências de música. O resto eu aprendi depois. Acho que consigo estabelecer um link arte-comunicação-animais

Pouca gente faz isso (entre meus contatos, só quem também faz isso - e faz muito bem, mas de uma forma diferente - é a Luli Sarraf, do Celebridade Vira-Lata).

Não me sinto "dono" de um estilo ou algo que o valha: meu maior desejo é ver gente fazendo coisas parecidas, protetores expandindo sua visão da coisa toda, aprendendo a se comunicar melhor, valorizando mais seus vira-latas, tornando-os cobiçados, ajudando a acabar com o abandono por isso: porque ninguém abandona um animal desejado, cobiçado, chique!

Esse post teve a pretensão de ser didático.
Foi por isso que o escrevi.

Um comentário:

  1. Estou imensamente feliz por ter adotado o Ozzy! Eu o trouxe para casa para fazer companhia à uma outra vira-latinha que já havíamos resgatado de um pesqueiro e o resultado não poderia ter sido melhor: os dois parecem irmãos, brincam o tempo todo e não nos dão mais trabalho do que qualquer filhote brincalhão costuma dar.
    Estou muito feliz por tê-lo adotado e por poder dar todo o carinho e cuidado que ele precisa e merece. Minha maior alegria é ver o quanto ele e a Cali ficam bem juntos!
    Sempre incentivo amigos e familiares a adotar um animalzinho, porque é gratificante receber tanto carinho de dois filhotinhos, em troca apenas do mesmo carinho e cuidado.
    Agradeço muito ao Fabio e à Soraia, que nos ajudaram a fazer do Ozzy membro da nossa família. Muito obrigada e parabéns pelo trabalho! Espero, de coração, que muitos outros cães possam ter o mesmo final feliz que o Ozzy e a Valentina.
    Um beijo!

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