testemunhal
Por Fábio Pegrucci
Engana-se quem pensa que aquilo que
conhecemos por “proteção animal” origina-se do amor e da compaixão de
pessoas humanas para com seres desprotegidos. A proteção animal (ou
aquilo que alguns pernósticos preferem chamar de ‘causa animal’) é
motivada justamente por manifestações opostas ao amor e à compaixão:
crueldade, negligência, irresponsabilidade, omissão – e pretende-se a
ação de enfrentamento dessas práticas.
Natural seria, pois, que a
proteção animal atraísse apenas e tão somente para suas fileiras, gente
completamente desprovida de vaidade e imbuída de bons e belos
propósitos.
Há cinco anos, eu era um sujeito que tinha medo de
cachorro, mas que se sentia incomodado e entristecido ao ver,
diariamente, tantos deles vivendo como mendigos em um parque público de
São Paulo. Tempos mais tarde, já envolvido até os cabelos com a ação
voluntária que iniciei e que resultou em um trabalho continuado e
razoavelmente conhecido, acabei por me encontrar com uma verdade
invisível para quem vê essa história de fora: a proteção animal está
longe de ser “habitada” apenas por anjos desprovidos de vaidade e, bem
ao contrário, é um dos terrenos mais pantanosos que eu já pisei – e
algumas vezes, sendo mais ou menos compreendido, eu já manifestei isso
por aqui.
Nesses últimos anos, eu testemunhei a vaidade
exacerbada de muitos e ridículos espetáculos de rivalidade entre outros;
compreendi que há gente absolutamente despreparada, mas que, tendo
acesso às câmeras de TV, toma para si o posto de “referência” e que
acaba desacreditando outros tantos, muito mais capazes e com trabalhos
muito mais fundamentados e consistentes; há gente radical demais; há
gente que ouve o galo cantar, mas não sabe onde: quer fazer parte, mas
não se informa o suficiente e acaba sendo propagadora de bobagens; há
pior: protetores que são “fiscais” de outros protetores, delatores,
dedos-duros – e que COMEMORAM (eu já vi isso acontecer) quando o
desafeto tem, por exemplo, o abrigo fechado e as atividades
interrompidas, pouco importando o destino dos animais que tem sob sua
guarda.
Tanta coisa eu vi que, tempos atrás, encontrei-me com uma
conclusão (que é minha, independente de ser compartilhada ou
compreendida): não existem protetores de animais! Eles é que estão na
Terra, entre os homens, em missão de resgate e salvamento; muitas
pessoas precisam deles para dar sentido às suas vidas e algumas obtêm
através deles sua única identidade; outras, só conseguem praticar o amor
se o mesmo for dedicado a eles que, em sua pureza infinita, prestam-se
humildemente a esse papel.
A gente aprende. A gente endurece. A gente perde as ilusões.
Por vezes, a gente acha, erradamente, que já viu tudo.
Porém, essa história com os bichos que tanto amamos, é pródiga em apresentar novas armadilhas.
Há um outro e novo perigo aos que se dedicam a um trabalho de
assistência a animais, que é resultante direto do fenômeno das redes
sociais: há quem se aproxime e se ofereça como suposto colaborador,
desprovido de qualquer engajamento e sem nenhum amor no coração,
motivado – de forma mais ou menos consciente, nunca se sabe – única e
exclusivamente pela oportunidade de “sair bem na foto”, de posar de
bonzinho e atuante nas belas causas; pela chance de, aproveitando-se da
iniciativa alheia, apoderar-se dos méritos e aparentar alguma beleza em
suas páginas na internet; pela possibilidade de, sequestrando parte do
trabalho que não lhe pertence, encenar um showzinho virtual para suas
plateias, normalmente formadas por pessoas tão ou mais levianas.
Basicamente: vampiros.
Sim, isso existe; e topar inadvertidamente com uma criatura desse
quilate, com os prejuízos e desgastes enormes que isso pode acarretar, é
de fazer drenar para o esgoto grande parte das energias de quem, um
dia, resolveu dedicar parte do tempo e dos recursos para tentar atenuar,
um pouco que fosse, o sofrimento que via no mundo.
Cansado? Muito.
Desiludido? Bastante.
Contudo, totalmente ciente de que os animais fazem muito mais por mim
do que eu posso sonhar fazer por eles, ainda prefiro celebrar todos os
dias, o que essa vivência me trouxe de positivo, as boas coisas que
aprendi, os valores que incorporei, as transformações que me permiti, as
pessoas que conheci; a começar pela Soraia Alessandra Cintra,
com quem, em quatro anos de parceria, dividi incontáveis perrengues,
mas também um número extraordinário de realizações; ela continua a mesma
baixinha mandona e brava de quatro anos atrás, mas expandiu seus
conhecimentos e práticas em várias direções e é dotada de uma capacidade
de trabalhar quase inacreditável.
Conheci profissionais da
medicina veterinária capazes de desempenhar sua missão com doses iguais
de amor e competência, como a doutora Fernanda Conde e sua equipe.
Os bons adotantes são muitos, muitos! Felizmente, a imensa maioria;
tantos, que seria injusto mencionar dez, vinte ou trinta. Mas gostaria
que todos se sentissem representados pela Cristina Kanazawa Converso
e seu marido Marcelo, adotantes da Jordana – pois sempre que pensamos
em por que ela, apesar de ter tido vários candidatos, demorou tanto
(quase um ano) para ser adotada, a resposta é óbvia: ela estava,
simplesmente, esperando por eles!
Eu, que nada sabia sobre esse
universo da tal “proteção”, tive a oportunidade de conhecer pessoas
realizando outros projetos, que passei a compreender e a admirar, como o
trabalho extraordinariamente belo, criativo e vencedor do Celebridade Vira-Lata, ao qual sempre me refiro dizendo que, quando crescer, quero fazer um igualzinho.
Conheci também um moço chamado Marcelo – a quem todos chamam de
Marcelinho Protetor – que é um verdadeiro agente público de saúde e de
educação, em sua luta diária em áreas carentes da Zona Norte de São
Paulo, carregando um número enorme de animais para castração – e quem
foi que disse que agente público precisa ser, necessariamente, um
funcionário empregado pelo governo? A proteção animal me fez entender
que um Marcelinho vale mais do que cem picaretas, concursados ou não,
recebendo do contribuinte para ocupar gabinetes e perpetuar a inócua
burocracia estatal.
Conheci ainda, e fui merecedor de respeito,
apoio e amizade, de instituições formalmente estabelecidas, como a
Associação Natureza em Forma e a ONG Cão Sem Dono;
mas conheci também muitas pessoas sozinhas, fazendo seus resgates,
abrigos e encaminhamentos, totalmente por conta própria, gente capaz de
colocar a casa, a cara, o nome e o bolso a serviço dos bichos
abandonados, como faz a intrépida Mariana Aidar.
Um pouco de longe, através das facilidades que a internet proporciona,
conheci também outros trabalhos bacanas, focados em educação, como o
Focinhos Gelados do Fowler T. Braga Filho;
e ao saber que o projeto tem data para ser encerrado, não lamento:
entendo hoje, com total perfeição, o que significa o “findar de um
ciclo” – e eu também hei de chegar lá um dia desses.
Conheci
ainda bons profissionais no serviço público (sim, eles existem!),
capazes de desempenhar suas funções com dedicação e carinho, como faz a
professora Osleny Viaro, do Centro de Controle de Zoonoses de São Paulo, há muitos anos ensinando adultos e crianças a viver de bem com os bichos.
Conheci gente bacana no meio político (sim, isso também existe!), como o Fernando Alfredo,
que lá no começo da história foi capaz de notar a procedência e o valor
do trabalho que realizávamos em um parque público e que viria a ser
nosso elo com o secretário de meio ambiente do Estado de São Paulo, o
deputado Bruno Covas, com quem mantivemos nos últimos anos uma parceria tão profícua quanto prazerosa.
Mas eu gostaria mesmo de dedicar esse testemunhal, escrito que foi para
os bons entendedores, muito especialmente a todos aqueles que, pelo
menos uma vez, foram colaboradores dos Cães do Parque oferecendo o
inestimável apoio do LAR TEMPORÁRIO a animais em processo de adoção: e
que o fizeram não só com o básico – cuidados, carinho, dedicação –, mas
também com engajamento, comprometimento e, mais que tudo, ÉTICA: Lucas e Karine, tão jovens, mas tão sérios e responsáveis; Paula Navarro, cujo único defeito foi ter aparecido na história com uns dois meses de atraso; a multitarefa Cida Candido; Marina e Dárcio, pais da Soraia, de paciência infinita; Natália Ferreira de Almeida e sua mãe, Sandra; Fernanda Pinacio, sua companheira Vanessa e sua mãe, Marion; Heloisa Domingues; Juliana Pileggi Dos Santos; Malu Pegrucci, Luiza F. Pegrucci; Maria Vera Monacchi,
de cujo apartamento saem os mais belos gatinhos de São Paulo; Edna
Perscarmona e família; Janaína Colado e família; Zildo e Isabel, que
moram lá no parque; Patrícia Alves Martins; Dona Maura; João Vieira, Lenylde e Carol, cujos lares temporários só não foram perfeitos por por um único motivo: nunca foram temporários; Luciana Pontes, que além de ter sido lar temporário várias vezes, é também a ‘piloto’ mais ponta firme e eficiente da companhia; Jully Moll; Lívia Ozawa.
A essas pessoas somos especialmente agradecidos pelo que fazem ou
fizeram, pela colaboração enorme que prestam ou prestaram e pela amizade
e respeito que prosseguem, mesmo muito tempo após terem se engajado
temporária e pontualmente à missão que abraçamos.
Nós, embora
seja inevitável que, muitas vezes, sintamo-nos abatidos por um cansaço
quase insuportável, acordamos todos os dias com a certeza de estarmos,
da melhor forma que nos é possível, oferecendo a nossa contribuição para
a construção de um mundo um pouco melhor, com nossas ações e decisões
nem sempre óbvias pautadas exclusivamente pelo amor e pelos bons
propósitos.
Quanto a eles, os vampiros dos propósitos alheios –
disso eu tenho a mais absoluta das certezas –, tão logo se vejam
despidos da personagem encenada, encontrar-se-ão inevitavelmente com
suas vidas miseráveis e vazias – das quais, como fossem eles mesmos
pobres animais abandonados, quando tiverem merecimento, um dia alguém há
de resgatar.
São Paulo, Junho de 2014
Parabéns pelo texto, muito interessante e bem escrito, e pela dedicação a essa trabalho tão bonito! Bom conhecer pessoas engajadas na proteção animal que não sejam nem apolíticas, nem socialistas (a maioria destes, provavelmente, são vampiros como os que você descreve).
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